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quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

ENTREVISTA - JOSÉ CARLOS LIBÂNEO

PERSPECTIVAS DE UMA PEDAGOGIA EMANCIPADORA FACE ÀS TRANSFORMAÇÕES DO MUNDO CONTEMPORÂNEO

A revista Pensar a Prática tem o privilégio de começar este seu primeiro número entrevistando o Dr. José Carlos Libâneo, um dos maiores pensadores brasileiros que tem dedicado todo o seu tempo a refletir sobre a formação de professores, na defesa intransigente da consolidação de uma escola pública de qualidade em nosso País. Suas reflexões sobre didática e prática de ensino e sobre a própria perspectiva crítico-social dos conteúdos escolares certamente o colocam entre os mais importantes teóricos progressistas da educação nos últimos tempos.  A sua preocupação com a prática pedagógica pode ser confirmada pela sua dissertação de mestrado em filosofia da Educação, em 1984 na PUC/SP. Nesta mesma Universidade, em 1990, ele defende sua tese de Doutora-mento, que versa sobre os fundamentos teóricos e práticos do trabalho docente. Suas obras mais conhecidas são a Democratização da Escola Pública - A pedagogia crítico-social dos conteúdos (1984) e Didática (1990). Libâneo é bastante conhecido em nosso meio educacional pelas profundas contribuições teóricas que vêm produzindo na área, articulando a reflexão crítica sobre a natureza histórico-social dos conteúdos de ensino e a própria didática de transmissão destes conhecimentos na perspectiva de uma metodologia que objetive – de forma competente – a emancipação histórico-crítica dos alunos no processo de ensino e aprendizagem no interior da escolarização. Para se ter uma idéia da atualidade de seus conhecimentos e de seus compromissos com o projeto político pedagógico da escola e com uma nova perspectiva para a educação brasileira em tempos de globalização, convidamos os nossos leitores a esta pequena incursão nas suas idéias e reflexões, gentilmente expostas por Libâneo na entrevista concedida à nossa Revista.
PP:Professor Libâneo, num momento em que se fala muito em crise de paradigmas científicos, morais, éticos e na própria crise da educação, que papel a escola deve desempenhar no mundo contemporâneo?
Libâneo: Meu ponto de vista é o de que o mundo contemporâneo pede uma participação ainda maior da escola. Se valorizávamos a escola num momento em que tínhamos mais certezas em relação aos seus objetivos pedagógicos e políticos, especialmente na luta contra as desigualdades e a marginalização social, hoje ela aumenta de importância. O mundo de hoje passa por transformações profundas nas esferas da economia, da política, da cultura, da ciência. Do lado econômico conjugam-se os avanços científicos e tecnológicos na microeletrônica, bioenergia, informática e meios de comunicação, com a globalização da economia que é, na verdade, a mundialização do capitalismo. Essa associação entre ciência e técnica acabaram por propiciar mudanças drásticas nos processos de produção e transformações nas condições de vida e de trabalho em todos os setores da atividade humana.**
Essas mudanças mexem diretamente com a escola. Mudanças na produção afetam a organização do trabalho e o perfil de trabalhador. Com as transformações técnicas (informatização, sistemas de comunicação, maior automação), modificam-se as profissões, reduz-se o trabalho manual, aumenta-se a necessidade de trabalhadores com mais conhecimento e melhor preparo técnico, de um trabalhador com mais cultura, mais polivalente, mais flexível. É evidente que tudo isso implica em valorizar a educação geral, propiciar novas habilidades cognitivas e competências sociais e pessoais. É esse tipo de escola que o capitalismo está precisando, uma escola com objetivos mais compatíveis com os interesses do mercado. No meu entender, os trabalhadores também precisam de novas bases para o ensino, inclusive levando em conta essas mudanças de que estou falando, mas de um ensino orientado por uma pedagogia da emancipação.
Eu penso que os educadores de esquerda, os educadores socialistas, precisam investir nisso que estou chamando de uma pedagogia emancipadora, que leve em conta as transformações do mundo contemporâneo. Mesmo porque elas não são apenas econômicas, elas são também culturais, éticas, filosóficas. Por exemplo, qualquer professor mais atento às coisas sabe que os avanços na informática e nos meios de comunicação mexem direto com seu trabalho, os próprios alunos levam o seu cotidiano, a rua, a cidade, a televisão, os problemas para a classe. A vida contemporânea afeta as práticas de convivência humana, as pessoas estão mais isoladas e mais egoístas, há muito mais violência, as crianças estão mais impacientes e mais dispersivas na sala de aula. Outra coisa: hoje estamos cercados de informação via meios de comunicação, por causa dela compramos certas coisas e não outras, ligamos determinado programa de televisão, compramos certas marcas de tênis, de roupa, apoiamos o candidato que tem mensagens mais convincentes sejam elas verdadeiras ou não. Ela desperta nas pessoas necessidades e desejos que muitas vezes nem podem ser satisfeitos e isso pode gerar revolta, frustração.
Estou dizendo essas coisas para insistir nessa idéia de que a informação é uma força poderosa que nos domina e domina especialmente a grande maioria das pessoas que está afastada do conhecimento. Porque informação e conhecimento não são a mesma coisa. O conhecimento é o que possibilita a liberdade intelectual e política para as pessoas darem significado à informação, isto é, julgá-la criticamente e tomar decisões mais livres e mais acertadas.
Outra coisa importante é que a globalização e as transformações técnico-científicas forçam os países mais pobres ou menos ricos a adequarem suas políticas econômica, educacional, de saúde etc. aos interesses do capitalismo mundializado. Ora, esses interesses estão voltados para o lucro, para a competividade. A competitividade só pode seguir a lógica do mercado, que pouco interessa em considerar o desemprego, o aumento da pobreza, a degradação da qualidade de vida, a degradação dos serviços públicos. Além disso, há problemas globais que atingem todos os países como a devastação ambiental, o desequilíbrio ecológico, o esgotamento dos recursos naturais, os problemas atmosféricos.
O que isso tem a ver com a educação? Tem tudo a ver. Privar os grupos sociais pobres ou empobrecidos da educação, da saúde, dos benefícios sociais é ampliar ainda mais o contingente de excluídos. Por isso, há que se perguntar em que grau, efetivamente, os países ricos e os organismos financeiros internacionais, de fato, interessam-se por uma formação geral e continuada para todos. Pode-se dizer, quando muito, que a centralidade da educação, enquanto instância de sistemas organizados de produção de conhecimento e informação, é valorizada exclusivamente em função da reorganização dos processos produtivos e da competitividade econômica. Quem estiver fora disso, adeus. Aliás, alguns consultores de grandes empresas internacionais também estão assustados com o fato de a internacionalização do capital estar provocando maior concentração da riqueza, mais privilégios, mais exclusão social.
PP: Você, então, continua valorizando a escola, mesmo neste momento de crise da educação. Que prioridades precisam ser atendidas pela escola dentro de uma proposta de educação emancipadora?
Libâneo: Eu venho propondo quatro objetivos para a escola de hoje. Vou nomeá-los em seqüência, mas eles formam uma unidade, a realização de um depende da realização dos outros. O primeiro deles é o de preparar os alunos para o processo produtivo e para a vida numa sociedade tecno-científica-informacional. Significa preparar para o trabalho e também para as formas alternativas do trabalho. Para isso, é preciso investir na formação geral, isto é, no domínio de instrumentos básicos da cultura e da ciência e das competências tecnológicas e habilidades técnicas requeridas pelos novos processos sociais e cognitivos. Na prática, refiro-me a conteúdos (conhecimentos, conceitos, habilidades, valores, atitudes) que propiciem uma visão de conjunto das coisas, capacidade de tomar decisões, de fazer análises globalizantes de interpretar informações, de trabalhar em equipes interdisciplinares etc.
Em segundo lugar, proponho o objetivo de proporcionar meios de desenvolvimento de capacidades cognitivas e operativas, ou seja, ajudar os alunos nas competências do pensar autônomo, crítico e criativo. Este é o ponto central do ensino atual, que deve ser considerado em estreita relação com os conteúdos, pois é pela via dos conteúdos que os alunos desenvolvem a capacidade de aprender, de desenvolver os próprios meios de pensamento, de buscar informações.
O terceiro objetivo é a formação para a cidadania crítica e participativa. As escolas precisam criar espaços de participação dos alunos dentro e fora da sala de aula em que exercitem a cidadania crítica. É preciso retomar iniciativas de organização dos alunos dentro da escola, inclusive para uma ação fora da escola, na comunidade. Insisto na idéia de uma coisa organizada, orientada pela escola, em que os alunos possam praticar democracia, iniciativa, liderança, responsabilidade.
O quarto objetivo é a formação ética. É urgente que os diretores, coordenadores e professores entendam que a educação moral é uma necessidade premente da escola atual. Não estou pregando o moralismo, a doutrinação. Estou falando de uma prática de gestão, de um projeto pedagógico, de um planejamento curricular, que programe o ensino do pensar sobre valores. Minha proposta é a formulação intencional, coletiva, de estratégias dirigidas ao ensino das competências do pensar no âmbito da educação moral, da tomada de decisões. Penso que um bom começo seria retomar nas escolas uma prática muito comum: orientadores educacionais trabalham com grupos de dez/quinze alunos nas chamadas “sessões de orientação em grupo” onde se debatiam questões morais: relacionamento com os colegas, sexo e namoro, justiça, honestidade etc. É importante que eu diga que competências éticas, de valorar, decidir, agir, tem a ver radicalmente com a prática. Você aprende a ser justo não apenas ouvindo alguém dizer o que é justiça mas praticando justiça no cotidiano, em cada momento e lugar. Por isso é fundamental o projeto pedagógico, porque ele expressa as intenções da direção e dos professores, quer dizer, os propósitos educativos da equipe em relação aos objetivos comuns, à organização da escola, à disciplina e também aos objetivos e práticas no campo ético: a solidariedade, o respeito às diferenças e à diversidade cultural, a justiça, a honestidade, a preservação ambiental, a paz, a busca da qualidade da vida.
São algumas pistas, muito simples, mas que na minha opinião são pontos mínimos de um programa assertivo de caráter democrático. Em resumo, eu proponho investir na capacitação efetiva para empregos reais e na formação do sujeito político socialmente responsável.
PP: Esses objetivos gerais são suficientes? A escola não está competindo em condições desiguais, por exemplo, com os meios de comunicação e com a informática?
Libâneo: É verdade, inclusive há muita gente achando que agora, com a informática e os meios de comunicação, a escola acabou mesmo. Eu até escrevi um artigo cujo título é: “Profissão, professor ou Adeus professor, adeus professora?” Veja bem, é uma pergunta, não uma afirmação. Eu defendo ardorosamente a escola e os professores, embora saiba das imensas dificuldades de seu funcionamento em nosso país. Eu falei, antes, de grandes objetivos, são expectativas bastante ambiciosas e reconheço que há contradições entre essas expectativas e a precariedade de condições concretas e de meios colocados. Mas eu quero apostar na superação dessas contradições.
Minha idéia em relação à educação escolar continua sendo a de apostar na centralidade do conhecimento, nos conteúdos em sentido amplo de conceitos, habilidades, valores. Mas penso que a escola precisa sair de seu isolamento, abrir-se para a sociedade global, para a cidade, para a cultura das crianças, numa articulação mais precisa entre escola e meio social, cultural, profissional, econômico, ecológico. E ao mesmo tempo que precisa reforçar seu papel de formação geral e preparação tecnológica, privilegiando conhecimentos e habilidades de base, precisa diferenciar-se de outras instituições educativas como família, meios de comunicação, organizações culturais ou assistenciais.
Tenho falado bastante numa idéia que é transformar a escola num espaço de síntese. A escola seria o lugar de síntese entre a cultura experienciada que ocorre na família, nos grupos de vizinhança, na cidade, nos meios de comunicação etc. e a cultura formal, os conteúdos, o ensino. Hoje as coisas já acontecem mais ou menos assim, ainda de forma meio desconexa. A televisão e outros meios informativos já entram na sala de aula mesmo com ou sem a participação do professor, porque os alunos já trazem uma cultura ‘midiatizada’, a meninada pobre, rica, remediada está impregnada das mídias, quer dizer, dos meios de comunicação. Além da televisão, a cidade intervém pelas suas instituições cívicas e sociais, as praças, as ruas, a propaganda, o lazer mas também pela violência, pelos problemas sociais. A escola não substitui essa rica prática educativa proveniente de contextos informais, mas ela deve conectar-se com eles.
      Ver a escola como espaço de síntese é considerá-la como lugar onde os alunos aprendem a razão crítica para poderem atribuir significados às mensagens e informações recebidas de fora, dos meios de comunicação, da cidade. Quero dizer que a escola tem o papel de prover as condições cognitivas e afetivas para o aluno desenvolver suas próprias capacidades para poder re-ordenar e re-estruturar essa cultura recebida de fora, que é uma cultura em mosaico, fragmentada. É uma outra maneira de falar em construção e reconstrução de conhecimentos.
        A professora Vani Kenski, da Unicamp, fala isso de uma maneira muito adequada. Ela diz que as informações vêm de forma global e desconexa, através de múltiplos apelos dos meios de comunicação. É o caso da televisão, por exemplo. E o que a escola precisa fazer? É aproveitar essa riqueza de recursos externos, reorganizar essas informações, orientar as discussões, ensinar os alunos a estabelecer distâncias críticas do que é veiculado, prover elementos para uma leitura crítica e ordenada dessas informações. É isto que chamo de função reestruturante e organizadora das informações e aportes culturais recebidos dos meios de comunicação e outras práticas educativas, fazendo a síntese entre a cultura formal e a cultura experienciada dos alunos.
Resumindo, a escola brasileira, especialmente a escola pública, não poderá ainda desfazer-se de um papel provedor de informação. Entretanto, aos poucos, pode ir se tornando cada vez mais uma estrutura possibilitadora de atribuição de significados da informação, propiciando aos alunos os meios de buscá-la, analisá-la, para darem-lhe significado pessoal.
Mas se a escola precisa mudar, os professores precisam mudar com ela e esta não é uma tarefa apenas dos professores mas dos governos federal e estaduais. Provavelmente o ponto mais crítico da educação brasileira hoje seja a valorização da profissão e a política de formação de professores. Nenhuma melhoria da educação escolar irá acontecer se não tivermos professores com salários convidativos, competitivos. Hoje ninguém quer ser professor de ensino fundamental e médio. E os governos ainda acham que ser professor é uma missão, um sacerdócio. Não adianta absolutamente nada o governo colocar a ênfase no ensino básico, melhorar o livro didático, dar merenda, divulgar os PCN, se não combinar tudo isso com a valorização da profissão de professor, salários, carreira e um programa nacional de formação e requalificação de professores. Precisamos de professores competentes no domínio da matéria que ensina, dos métodos, dos procedimentos de ensino, da gestão da sala de aula, na capacidade de adquirir meios de pensamento autônomo e crítico, na capacidade de fazer uma leitura crítica e contextualizada da realidade. Mas, antes disso, o professor precisa ter uma identidade profissional e isso é impossível sem valorização do emprego de professor.
PP: Você acha, então, que sob o prisma da didática, não há riscos para a aprendizagem escolar a utilização da TV, vídeos e computadores na escola?
Libâneo: Ao contrário, vejo imensas vantagens e imensas possibilidades. Mas veja bem, não se trata de uma ilusão tecnoinformacional, do tipo achar que computador é a grande saída. Li em algum lugar a declaração de um desses papas da informática, não é o Bill Gates, mas um deles: “o que está errado com educação não é possível ser corrigido com a tecnologia.” Eu acho essa declaração supersensata. A meu ver, as novas tecnologias da informação e da comunicação precisam urgentemente ser integradas nas escolas, mas sem exclusão do professor e de outras mediações relacionais e cognitivas no processo de aprendizagem. As novas tecnologias são indispensáveis na escola nas mãos de um bom professor.
Nisso eu acho fundamental introduzir nos currículos de formação inicial e na formação continuada de professores disciplinas e práticas sobre educação, comunicação e mídias e, ainda, sobre processos comunicacionais na escola e na sala de aula. Os professores precisam vencer a resistência ao uso das máquinas e equipamentos eletrônicos, aprender sobre os meios de comunicação, desenvolver habilidades para o uso das mídias, mudar sua atitude em relação à inovação tecnológica em geral. As novas tecnologias da informação e da comunicação são portadoras de saberes, informações, valores, idéias, portanto, contribuem para a democratização da cultura e da ciência. Elas potencializam o processo comunicacional na sala de aula. Por isso, professores e professoras precisam saber tudo sobre vídeos, como discutir um filme ou um programa cultural, CDrom, ensino através de computador, sobre rádio e televisão, sobre criação e produção de programas, videoconferência, teleconferência etc.
A professora Maria de Rezende e Fusari tem uma posição bem clara sobre esse assunto: os meios de comunicação social, isto é, as mídias e multimídias, compõem o conjunto das mediações culturais que caracterizam o ensino. Elas são, portanto, portadoras de idéias, emoções, atitudes, habilidades e se transformam em objetivos, conteúdos, métodos de ensino. Os meios de comunicação aparecem na escola sob três formas: como conteúdo escolar presente nas várias disciplinas dos currículos, como competências e atitudes profissionais dos professores (porque os professores são, também, comunicadores) e como meios tecnológicos da comunicação humana, visuais, cênicos, verbais, sonoros, audiovisuais.
Para resumir minha opinião: ter na escola computador, vídeo, jornal, internet, educação à distância não é suficiente. É preciso que os professores incorporem esses meios comunicacionais como conteúdos das aulas, que aprendam a trabalhar através deles, aprendam a dominar a linguagem televisual. A professora Mariazinha Fusari diz que os educadores escolares precisam dominar um saber sobre produção social de comunicação cultural e um saber ser comunicador escolar com mídias e multimídias. Eu sei muito bem que isso não depende só dos professores, depende muito dos órgãos do Estado que administram o sistema escolar, mesmo porque há muitas escolas que precisam de coisas muito mais básicas do que computador. Mas eu acho que os professores ganharão mais respeito profissional se se convencerem a buscar mais qualificação profissional.
PP: Tendo em vista o processo de globalização, o senhor acredita que existe alguma possibilidade concreta de a escola pública criar formas alternativas direcionadas para a formação da identidade cultural brasileira, superando ou mesmo resistindo às determinações hegemônicas dos países do primeiro mundo?
Libâneo: É preciso ver a globalização como uma tendência real, mas não se pode fazer um raciocínio linear. Ela não ocorre por igual nem no mundo nem no Brasil. Temos aqui uma grande heterogeneidade econômica e social, disparidades regionais acentuadas. Há mais de dez anos, em 1986, na IV CBE aqui em Goiânia, eu defendia numa conferência uma escola unitária baseada no direito de todos de desfrutarem de uma base comum de cultura geral e de formação científica, isto é, uma educação pública nacional articulada com as diversidades regionais e locais. Continuo adepto desse ponto de vista e foi isso que me levou a apoiar os Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC, inclusive porque colocaram explicitamente os princípios da flexibilidade curricular e da adequação local, de modo que a proposta não tivesse caráter de coisa padronizada, algo imposto e uniforme.
Você fala da possibilidade de formas alternativas para a formação da identidade cultural. Eu acho que elas são importantes, especialmente aquelas mais preocupadas com o mundo cultural dos alunos. É uma tendência forte no meio educacional, especialmente em educadores com formação sociológica, essa idéia de pensar um currículo bem aberto, a partir da análise do mundo cultural que envolve as pessoas da escola, dos saberes daquele grupo de alunos, porque é essa cultura que expressa maneiras de agir, de sentir, de falar e ver o mundo. O pessoal da lingüística tem ido também por esse caminho.
Essas idéias, a meu ver, não são novas, apenas ganham hoje outra linguagem e até um tom pós-moderno. Na verdade, Paulo Freire falava disso e a pedagogia crítico-social também. Mas eu ainda acho mais importante atacar os problemas prioritários e atacar com soluções abrangentes. Soluções localizadas numa escola, num município, são pouco eficazes. Não estou dizendo que não devamos partir da cultura vivida, do cotidiano. A cultura popular e todo o conjunto de conhecimentos e vivências sócio-culturais trazidas pelos alunos formam o quadro de realidade do qual qualquer aprendizagem parte. Mas essas vivências locais, culturais precisam ligar-se e referir-se ao contexto mais amplo da sociedade, que é o mundo atual, cientifico, tecnológico, planetário, ecológico. Vamos partir da realidade cultural da criança, da linguagem enquanto construtora de significados. Mas vamos, em seguida, colocar os alunos frente aos problemas e desafios do nosso tempo, vamos criar procedimentos seguros de ajudar os alunos a aprender, a formar conceitos, a desenvolver competências do pensar. O saber é, sim, instrumento de poder e muito mais para os que estão excluídos.
PP: Com a mundialização da economia, o fim do socialismo real, a queda do muro de Berlim, o avanço do capitalismo asiático e, segundo alguns críticos, com a morte do marxismo etc. poderíamos afirmar que a pedagogia de esquerda está morta? Se não, de que pedagogia estamos falando?
Libâneo: De modo algum. Há um certo espanto dos educadores com a força do neoliberalismo, há um sentimento de que os educadores de esquerda ficaram meio acuados. Eu acho, primeiro, que o sistema escolar reage muito lentamente aos impactos detonados pelas forças sociais tipo globalização, sociedade da informação. É claro que hoje o bate-volta entre escola e sociedade é bem mais rápido, mas ainda assim não há uma resposta imediata na escola em relação às transformações na produção. Ou seja, há lugar para uma contra-ideologia, para propostas inovadoras, para novas formas de intervenção. Penso que os problemas básicos da escola pública persistem, piorados. Há um desigual desenvolvimento econômico e social do país, uma precária base técnica e material, ausência de políticas e diretrizes globais para a educação escolar, precário funcionamento das escolas, despreparo profissional generalizado do professorado, falta de carreira docente, baixos salários etc. Nessas coisas, o que de fato mudou em relação à realidade de uns dez anos atrás?
Eu quero crer que continua em pé uma pedagogia de esquerda. Ela tem hoje várias faces, várias modulações. Há muitos educadores de esquerda buscando saídas. Há várias propostas circulando pelo país afora. Você tem, por exemplo, a Escola Plural em Belo Horizonte, a Escola Candanga em Brasília, temos uma tradição de práticas inovadoras no Paraná, em Pernambuco, no Rio Grande do Sul, especialmente em Porto Alegre, a escola cidadã. Tenho certeza, também, de que há muitas escolas em Goiânia, fazendo coisas ótimas, construindo o projeto pedagógico em equipe, lidando criatividade com a comunidade, investindo na qualidade pedagógica das aulas. Tenho certeza de que isso acontece em muitos lugares do Brasil.
Penso que uma pedagogia de esquerda, uma pedagogia crítica, continua tendo como suporte de sua teorização ir à raiz das contradições sociais. Os problemas, os dilemas, os desafios decorrem de fato de interesses, antagonismos, disparidades presentes na dinâmica das relações sociais. É verdade que tais contradições extrapolam muito o terreno das classes sociais, porque temos que considerar hoje as contradições de etnia, gênero, religião, gerações, assim como a degradação ambiental, a fome, a violência etc.
Mas uma pedagogia de esquerda não pode ficar nas generalidades e nos discursos cheios de boas intenções mas vazios de exercício prático. Também não pode ficar de costas às mudanças do mundo contemporâneo. Uma pedagogia de esquerda precisa responder: que objetivos e conteúdos são necessários para a preparação para o trabalho e para o mundo tecno-científico-informacional? Como vou ensinar meus alunos as competências do pensar? Como posso melhorar minhas práticas de comunicação com os alunos? Como utilizar vídeos, jogos, jornais, revistas, computador, para possibilitar acesso mais rápido e eficaz às informações? Como melhorar a qualidade cognitiva das experiências de aprendizagem dos meus alunos e colocá-los em condições de competitividade com os filhos de famílias social e economicamente privilegiadas?
Eu penso, então, que é preciso avançar para além da crítica. Há alguns anos, um pedagogo norte-americano, Henry Giroux, disse que, para repensar as alternativas democráticas para uma educação emancipatória, os educadores precisavam dar um passo além da linguagem da crítica. Eu acho isso. Temos tido uma fértil produção na nossa área de crítica ao Estado, ao neoliberalismo; temos análises até bastante assertivas para novos projetos de esquerda. Essas publicações acertam no geral, mas têm dificuldades de lidar com o particular. Quero dizer que esses estudos chegam até à porta da escola, mas não dão conta do que acontece ali dentro. Esta é uma tarefa dos pedagogos que, por sua vez, têm sido incapazes de explicitar objetivos, conteúdos, práticas, como respostas aos desafios colocados pelas novas realidades. Aliás, não é só a esquerda que vem sofrendo desse mal, isto é, de ficar nas grandes análises ou de trazer soluções pela periferia do sistema escolar. A direita tende a uma visão técnico-administrativa de reforma, como aliás ocorreu com a reforma educacional do regime militar nos anos 70. Isso quer dizer ênfase na gestão da escola dentro de um modelo de organização empresarial, na eficácia do sistema, na avaliação institucional externa. Sobra o espaço para os psicólogos e psicopedagogos  entrarem com mil e uma formas de construtivismos e, agora, com a inteligência emocional.
Da minha parte continuo lutando pela centralidade das questões pedagógicas nas escolas e salas de aula, do processo de ensino e aprendizagem e, portanto, da formação de professores. Podemos e devemos criticar o neoliberalismo, as relações capitalistas de dominação, a luta por uma sociedade justa e igualitária, o respeito aos direitos humanos, à vida, ao ambiente etc.
Estou de acordo com tudo isso. Mas, em se tratando da escola, se o meu trabalho profissional e político é na escola, então ganha prioridade o ensino e aprendizagem, a qualidade dos serviços que a escola presta, a gestão da escola, o projeto pedagógico a serviço do ensino.
PP: Você parece um tanto contrariado com os rumos do construtivismo. Qual é sua opinião a esse respeito? E a teoria da inteligência emocional tem futuro entre os educadores?
Libâneo: Não sou contra o construtivismo mas contra sua oficialização e sua banalização. O construtivismo é uma concepção psicológica de desenvolvimento e aprendizagem que acentua a construção do conhecimento pelo aluno, a relação ativa entre o aluno e o objeto de conhecimento, a importância da construção das estruturas cognitivas. É uma teoria importante e sem dúvida muito útil aos professores. O problema é achar que o construtivismo resolve todos os males pedagógicos da escola. A professora Marilia Miranda, da UFG, tem estudado os exageros e os riscos da adoção do construtivismo no Brasil. Uma de suas críticas principais é que uma versão atual do construtivismo transforma uma concepção psicológica de inteligência em princípio educativo, ou seja, estaria de volta o “psicologismo” em educação.
A difusão dessa concepção é tão grande que alguns Estados oficializaram o construtivismo. Em muitos lugares fala-se aos professores para jogar fora tudo o que ele sabe e faz, porque agora chegou o construtivismo. Os professores passam a entender que o método agora é trabalhar com sucata, que não é o professor que ensina, é o aluno que constrói seu conhecimento, que agora não é mais necessário livro didático porque o que importa é o saber da vida da criança etc. Eu não acho isso certo. Sei que há muitos intelectuais sérios que têm influenciado os professores com seus livros e palestras, mas é preciso que prestem atenção no que os professores fazem, com o que dizem e com o mundo cultural da escola e do professor. Por exemplo, quando se diz que a criança aprende fazendo, que ela é que constrói seu conhecimento, o professor tem uma boa justificativa para livrar-se do peso de seu despreparo teórico e profissional. Agora não precisa mais preocupar-se com conteúdo, o professor não precisa mais ter autoridade na sala porque o que ele deve fazer é só orientar os alunos. Acho que não é assim que se faz uma escola e um ensino de qualidade.
Quanto à teoria da inteligência emocional, é uma teoria recente difundida largamente por um autor chamado Daniel Goleman. O título do livro diz assim: Inteligência emocional: a teoria revolucionária que define o que é ser inteligente. Ele diz que os nossos sentimentos precisam ser considerados em complementaridade com a nossa inteligência. Isso não é novidade, Piaget já havia assinalado que afetividade e inteligência são duas faces da atividade cognitiva, embora uma não se reduza a outra. O problema que eu vejo é o modismo e o reducionismo, de achar que agora não precisa muito conteúdo, nem muita disciplina, o que precisa é que as crianças sejam felizes, que expressem seus sentimentos, que só vale o que dá prazer. De repente os professores começam a dar explicações fáceis ao insucesso escolar, às dificuldades dos alunos com a aprendizagem, achando que isso está ligado aos sentimentos, às emoções deixando de lado o papel do ensino, dos conteúdos, da escola. Isso eu não acho certo.
           
PP:  O  que  a política neoliberal trouxe de pior para a educação e que contrapõe,  no essencial, ao projeto histórico de uma escola pública de qualidade social?
Libâneo: Vou responder sua pergunta de uma forma mais ampla. O projeto neoliberal forma um conjunto homogêneo de princípios e diretrizes operacionais que interfere praticamente em todos os países. Trata-se, de fato, de um capitalismo mundia1izado. Os organismos internacionais tipo OCDE, Banco Mundial, que formulam políticas de ajuste e de estabilização, defendem a idéia de que o desenvolvimento econômico, alimentado pelos avanços técnico-científicos, garante, por si só, o desenvolvimento social. Daí que a principal crítica que a esquerda faz ao neoliberalismo é sua orientação economicista e tecnocrática, desconsiderando as implicações sociais e humanas do desenvolvimento econômico.
Mas acontece que a economia precisa também de políticas sociais. No caso da educação, os países precisam reavaliar as instituições encarregadas de produzir conhecimento e informação. A reforma dos sistemas educativos, com isso, passou a constituir-se prioridade. A partir daí foram sendo formuladas as estratégias de reforma que, na maioria dos países, giram em torno de quatro pontos: a gestão educacional, a profissionalização dos professores, a avaliação institucional e o currículo nacional. Estes quatro pontos estão imbricados: a política educacional recebe sua unidade pelo currículo, que precisa de professores para ser viabilizado, dentro de uma estrutura adequadamente gerida, com o suporte da avaliação institucional.
Veja bem, praticamente todos os países que fizeram reformas educativas pegaram estes quatro pontos. Mas não são, de fato, questões cruciais de qualquer sistema educacional? Muitos de nós, desde o início dos anos 80, temos lutado por vários aspectos desses pontos. Por causa disso, as reformas educativas de tipo neoliberal têm confundido um pouco os educadores de esquerda. Então, quando você pergunta o que o neoliberalismo trouxe de pior para a educação, minha resposta precisa buscar o que está por detrás desses quatro pontos.
       Uma coisa óbvia, por exemplo, é a seguinte contradição. Os países precisam compatibilizar seu sistema educativo com as exigências do mercado e da globalização da economia, mas, ao mesmo tempo, a quantidade de investimentos deve ser compatível com a reorganização do Estado, dentro dos parâmetros do neoliberalismo (redução das despesas e do déficit público, congelamento de salários etc.). Se você pega esse raciocínio, fica fácil perceber o que esses quatro pontos trazem de negativo. Os sistemas investem no que é barato e eficaz, economizando no mais caro (pagar bem os professores, por exemplo). Com isso, a aplicação das reformas não tem levado ao atendimento das condições necessárias à efetivação as mudanças educativas. Em vários países essa situação tem criado nos professores desconfiança, pessimismo e freqüentemente ceticismo.
Para não esticar muito o assunto dou dois exemplos. Todos sabemos da importância da autonomia escolar quando falamos de gestão. Com a autonomia, os professores se envolvem e assumem um papel na construção da escola, fortalecem sua identidade profissional, criam vínculos mais estreitos com a comunidade, participam das decisões etc. Mas por detrás da autonomia está a idéia de descentralização. Veja bem, a descentralização, no sentido de fortalecer a equipe de professores, de a escola poder decidir seu rumo, suas práticas, é uma coisa boa; a gente defende isso. Mas numa visão neoliberal, a descentralização tem a ver com o enfraquecimento do Estado, porque tem cada vez mais dificuldade de gerir uma imensa rede escolar. Então aparece o discurso da colaboração da comunidade, da autonomia junto com a diminuição do papel do Estado em bancar o sistema educacional. O que vale dizer que as responsabilidades do governo e da sociedade civil se eqüivalem. Eu já ouvi muitas vezes diretores de escolas contarem que vão à Secretaria da Educação falar de quadras de esporte, substituição de lâmpadas etc. e a resposta é que agora descentralizou, vocês têm que resolver isso é na escola mesmo. É claro que isso é uma idéia enganadora de descentralização e autonomia.
       Outro ponto é a profissionalização dos professores. Ninguém é contra isso, inclusive é condição para a reconfiguração da identidade profissional, uma vez que formação, salário, carreira são ingredientes da valorização da profissão. Afirma-se que a formação geral de qualidade dos alunos depende de uma formação de qualidade dos professores. Mas, na prática, as políticas de salários, carreiras e formação são incompatíveis com as intenções declaradas, imperando outra lógica, a economicista. Além disso, há uma tendência à estandartização da formação e do trabalho do professor (por exemplo, formação de professores na base de treinamento em técnicas e habilidades, com pouca teoria), exigência de mais trabalho, pressão para produzirem mais. Nesse caso, o discurso da profissionalização aparece contra o professor.
PP: Que importância o senhor atribui ao projeto pedagógico da escola – introduzido pela LDB – e quais as preocupações que este modelo pode desencadear com objetivos, conteúdos e métodos tão diferenciados e pulverizados em todo o sistema educacional?
Libâneo: Primeiro que tudo, a idéia e a prática do projeto pedagógico não são novas, muitos de nós estimulam, há anos, o trabalho coletivo na escola. Naquele mesmo artigo que eu citei anteriormente, lembro que é de 1986, eu escrevia mais ou menos o seguinte: um dos objetivos político-pedagógicos da escola unitária deveria ser a participação coletiva e coordenada dos professores e de todos os profissionais da escola. Então eu acho que o projeto pedagógico é uma frente ampla dos educadores de uma escola dando a direção de sentido para atividade escolar em busca de uma pedagogia da emancipação. Ele não é um sistema de gestão, plano é uma coisa, execução é outra, mas ele dá o tom do sistema de gestão e de tomada de decisões. A formulação coletiva do projeto pedagógico tem a ver, portanto, com o valor formativo do ambiente de trabalho.
Eu acho essa idéia muito forte. Quero dizer que o local de trabalho e as situações de trabalho têm um potencial formativo. Os profissionais que trabalham na escola aprendem através da organização escolar. A organização escolar também aprende, mudando junto com seus profissionais. Então, a idéia-chave é esta: os indivíduos e os grupos mudam, mudando o próprio contexto em que trabalham.
Há riscos? É verdade que as propostas neoliberais para a educação falam do projeto pedagógico como materialização da autonomia da escola. É também verdade que em muitos lugares o projeto pedagógico é uma forma de desobrigar o Estado de atender as escolas, deixando a responsabilidade aos professores, às famílias, à comunidade. No outro extremo, ainda, corre-se o risco de pulverizar objetivos e conteúdos, à medida que se restringe a um currículo local.
Eu acho que tudo depende de uma concepção de projeto pedagógico bem segura, bem realista, bem sensata. O projeto tem, de fato, um conteúdo político forte seja à direita seja à esquerda. Autonomia absoluta é ilusão. Penso que o trabalho coletivo será bem representado no projeto pedagógico se as escolas derem conta de pensar junto e organizadamente: princípios comuns, objetivos comuns, sistema e práticas de gestão negociadas, unidade teórico-metodológica do grupo de professores, sistema explícito e transparente de avaliação do projeto.
PP: Segundo os PCNs, a avaliação de conhecimentos deve ser aberta, visando sempre a uma aferição qualitativa da aprendizagem dos alunos – plenamente articulada com o projeto pedagógico de cada escola –, entretanto, o mesmo MEC, ao instituir o processo de controle dos resultados educacionais, estabelece uma avaliação de natureza eminentemente quantitativa e externa ao processo de cada instituição. Como o senhor analisa tal contradição?
Libâneo: Eu não chamaria isso de contradição mas de ambigüidade. Eu acho que a linha de ação do MEC tem acertos e erros.
PP: Ao analisar os conteúdos, as metodologias e as diretrizes didáticas sugeridas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais a serem aplicadas na escola, que avaliação o senhor faz do ponto de vista da didática?
Libâneo: Eu falava que a profissionalização do professor é uma questão prioritária. Há uma fragilidade muito grande do sistema de formação. Minha impressão é que em todo o país os professores vêm recebendo uma formação profissional muito precária nas disciplinas que irão lecionar e no “saber ensinar”. A cultura geral do professorado é frágil. É claro que tudo isso tem a ver diretamente com a descaracterização da profissão, inclusive pelas condições de trabalho, salário, jornada, carreira. Então, minha primeira preocupação nem é avaliar os conteúdos e as metodologias sugeridos pelos PCNs, mas saber se os professores estão preparados para entender os PCNs e trabalhar com os PCNs. Então, antes ou junto com a implantação dos PCNs, eu penso que seria necessário um plano nacional de requalificação profissional de professores, decisões convincentes sobre piso salarial de professores, plano de carreira, sistema nacional de formação inicial e continuada, formas de acompanhamento do processo de implementação, alocação de recursos para ações de formação e requalificação.
Agora, em relação à didática, acho essa disciplina indispensável na formação do docente. Para mim, o domínio da didática é crucial, didática e prática de ensino junto. Não adianta apenas o professor ter consciência política, participar dos sindicatos. O professor precisa dominar e atualizar-se nos conceitos, noções, procedimentos ligados à matéria (ou matérias, no caso do professor das séries iniciais) e precisa “saber fazer”, ter capacidade operatória que é saber definir objetivos de aprendizagem, saber selecionar atividades adequadas às características da classe, saber variar situações de aprendizagem, saber avaliar aprendizagens nas várias disciplinas, saber analisar resultados e determinar causas do fracasso, saber participar de uma reunião, ter manejo de classe, saber usar autoridade, saber escutar, saber diagnosticar dificuldades dos alunos. Acho que as faculdades e cursos de licenciatura não estão ensinando essas coisas. Atualmente poucos professores dos futuros professores têm experiência de magistério com crianças e jovens e se perdem na hora de trabalhar o “saber fazer” docente.
Então, me parece que o desafio dos cursos de formação de professores é este: colocar na sala de aula professores inteligentes e práticos, isto é, capazes de dominar a situação de trabalho com boas soluções, com esperteza, com boas estratégias. Ser inteligente é você usar o conhecimento de maneira útil pertinente, ter soluções, ter idéias, ter senso prático... Mas para isso, é preciso uma boa formação. Os professores precisam aprender a buscar informação, adquirir ferramentas conceituais para compreender a realidade, ampliar sua cultura geral, aprender a lidar competentemente com as práticas de ensinar. São questões da didática. Isso precisa estar presente na formação inicial, feita nos cursos de formação, e na formação continuada, feita nas próprias escolas ou partir dos problemas apontados nas escolas.
Também acho necessário que os cursos de formação e as escolas planejem estratégias de mudança na mentalidade dos professores em relação às formas de trabalho. As transformações na ciência, na noção de conhecimento e do processo do conhecimento estão afetando muito os métodos e procedimentos de ensino. Essa mudança de mentalidade precisa começar na própria organização pedagógica e curricular, nas formas de gestão da escola, na elaboração do projeto pedagógico. Os professores mudarão sua maneira de ensinar à medida que vivenciarem novas maneiras de aprender. Por isso acho importante a formação continuada, na própria escola. Esse é um trabalho conjunto da escola, em que o coordenador pedagógico tem um papel crucial. Todas as escolas precisam ter um coordenador pedagógico muito bem formado para poder ajudar os professores a pensar sua prática, a estudar, tendo como objeto de estudo tanto as ações que já realiza quanto a relação existente entre esse objeto de conhecimento (o ensino) e seus próprios processos de aprendizagem.
PP: Mesmo não sendo a sua área específica, como o senhor vem acompanhando as inovações e a própria reflexão da didática no interior da Educação Física Escolar?
Libâneo: Eu fiquei impressionado com os temas, com as pesquisas, com o grande número de participantes do X Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, realizado em Goiânia em outubro passado. É um movimento que se fortaleceu muito nos últimos anos, aliás, sei que há mais tempo em vários estados os professores de Educação Física fazem encontros, seminários, de modo que essa busca de ressignificação da Educação Física não é de hoje.
       Tenho convicção de que a cultura corporal, a corporeidade são conteúdos que devem estar integrados num projeto de formação onilateral do aluno e, conseqüentemente, do sujeito-cidadão contemporâneo. Quando leio o que colegas da Educação Física escrevem sobre as práticas corporais, sua historicização, problematização, produção de conhecimento sobre cultura corporal, fico tentado em fazer um paralelo com a Pedagogia. A Pedagogia é essencialmente teoria e prática, um pedagogo é antes de tudo um prático-teórico da ação educativa. Isso quer dizer que um pedagogo não pode ser só um teórico, ele também não pode ser só um prático. Parece-me que se trata da mesma situação do professor de Educação Física. Tudo começa na sua prática, que é a cultura corporal, prática que também é o seu conteúdo. O pouco que aprendi com vocês sobre a cultura corporal não é o mero exercício do corpo e do caráter, não é só o esporte, a saúde do corpo, a motricidade, as brincadeiras, as danças, as lutas, a formação da personalidade. Ela é tudo isso e mais a problematização e a historicização dessas práticas corporais, precisamente para professores e alunos também produzirem cultura corporal. É nisso que vejo semelhança com a Pedagogia, porque a Educação Física, assim como a Pedagogia, opera basicamente no âmbito da prática em que busca juntar a teoria e a prática, a partir dessa mesma prática. Me perdoem os colegas se ainda não entendi suficientemente essa busca do objeto do ensino da Educação Física.
NOTAS
*  Entrevista concedida ao Prof. Nivaldo A. N. David, em Goiânia, em 16 de dezembro de 1997
** Entrevista com José Carlos Libâneo: Perspectivas de uma Pedagogia  Pensar a Prática 1:1-21,jan./jun.1998

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