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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

John Locke - Aprendizado sem idealização


John Locke
Aprendizado sem idealização
A  Inglaterra estava virando de cabeça para baixo no século 17, na economia, na política, na ciência e na cultura. O filósofo John Locke foi um dos porta-vozes dos novos tempos, com uma visão nem um pouco idealizada do ser humano. Nada de bondade natural ou Deus interior. Para ele, todo progresso do ser humano vem do aprendizado.
















Grandes Pensadores: John Locke

O educador da experiência
Filósofo inglês via na mente da criança uma tela em branco que o professor deveria preencher fornecendo informações e vivências
Márcio Ferrari

A influência do inglês John Locke (1632-1704) costuma ser separada em três grandes áreas. Na política, ele foi o pai do liberalismo como o conhecemos hoje (é o autor de dois tratados de governo que sustentaram a implantação da monarquia parlamentarista na Inglaterra, inspiraram a Constituição dos Estados Unidos e anteciparam as idéias dos iluministas franceses). Na Filosofia, construiu uma teoria do conhecimento inovadora, que investigou o modo como a mente capta e traduz o mundo exterior. Na Educação, compilou uma série de preceitos sobre aprendizado e desenvolvimento, com base em sua experiência de médico e preceptor, que teve grande repercussão nas classes emergentes de seu tempo.

Mas essas três vertentes não são estanques. A grande e duradoura importância de Locke para a história do pensamento está no entrecruzamento de suas áreas de estudo. Assim, a defesa da liberdade individual, que ocupa lugar central na doutrina política lockiana, encontra correspondência na prioridade que ele confere, no campo da Educação, ao desenvolvimento de um pensamento próprio pela criança. E suas investigações sobre o conhecimento o levaram a conceber um aprendizado coerente com sua mais famosa afirmação: a de que a mente humana é tabula rasa, expressão latina análoga à idéia de uma tela em branco. "A razão, inicialmente, encontra-se apenas em potência na criança", diz Clenio Lago, da Universidade do Oeste de Santa Catarina.

Treino para a razão

É por isso que, para Locke, o aprendizado depende primordialmente das informações e vivências às quais a criança é submetida e que ela absorve de modo relativamente previsível e passivo. É, portanto, um aprendizado de fora para dentro, ao contrário do que defenderam alguns pensadores de linha idealista, como o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), e a maioria dos teóricos da Educação contemporâneos. "A concepção construtivista, por exemplo, institui-se com base na relação entre sujeito e objeto, enquanto a visão lockiana enfatiza apenas o objeto", explica Lago. Embora considerasse que a origem de todas as idéias estava fora do indivíduo, Locke via a capacidade de entendimento como inata e variável de pessoa para pessoa.

Os dois fundamentos iniciais de sua obra mais importante, Ensaio sobre o Entendimento Humano, são a negação da existência de idéias inatas - o que contrariava o legado do filósofo mais influente da época, o francês René Descartes (1596-1650) - e o princípio de que todas as idéias nascem da experiência, refundando, na ciência moderna, o empirismo. Ao combater o inatismo, Locke se opunha às correntes de pensamento que encontravam no ser humano a idéia natural de Deus e noções de moral ou bondade intrínsecas. Tudo isso seria atingido apenas pela razão. Os princípios morais derivariam de considerações a respeito do que é vantajoso para o indivíduo e para a coletividade. A educação ganhava, desse modo, importância na formação da criança, uma vez que, sozinha, ela se encontra desprovida de matéria-prima para o raciocínio e sem orientação para adquiri-lo, estando fadada ao egocentrismo e à ignorância moral.

Apesar do valor que dava à racionalidade, Locke era cético quanto ao alcance da compreensão da mente. O objetivo de sua obra principal foi tentar determinar quais são os mecanismos e os limites da capacidade de apreensão do mundo pelo homem. Para o filósofo, como todo conhecimento advém, em última instância, dos sentidos, só se pode captar as coisas e os fenômenos em sua superfície, sendo impossível chegar a suas causas primordiais.

Portanto, ele considerava a metafísica um ramo da Filosofia geralmente destituído de utilidade. Os verdadeiros avanços do saber em sua época estavam, em sua opinião, ocorrendo no ramo das Ciências Naturais, por meio do trabalho de pesquisadores como o químico Robert Boyle (1627-1691) e o físico Isaac Newton (1642-1727), com os quais manteve relações de amizade. De acordo com a teoria lockiana, os sentidos não produzem conhecimento, mas fornecem à mente material para que ele seja elaborado. Esse material é chamado pelo nome genérico de "idéias", que são representações do mundo físico. Elas se dividem entre as de sensação, vindas imediatamente do exterior (como frio, doce, volume e movimento), e as de reflexão (como memória e vontade), que se originam da própria mente e transcorrem no seu interior.

Dessas duas fontes nascem as idéias simples. Delas provêm todas as elaborações da mente, que resultam em idéias complexas. Para Locke, a produção intelectual, qualquer que seja, pode ser decomposta até chegar às idéias simples, que se encontram em seu início. Ainda entre os elementos mais básicos do trabalho da mente estão as qualidades, que ele divide em duas categorias: as primárias, inseparáveis dos corpos (como extensão e contorno), e as secundárias, poderes que as coisas têm de ativar a percepção (como som e cor).

A partir desse ponto, o filósofo investigou a classificação dos modos de combinação das idéias, a natureza da substância, o significado da identidade, a produção de vínculos entre os conhecimentos, a natureza das ciências, o caráter da linguagem como representação de significado e os graus de certeza de que a mente é capaz. Sua definição de conhecimento, no entanto, é bastante simples. Trata-se da percepção de concordância ou discordância entre as idéias.

Para Locke, as crianças não são dotadas de motivação natural para o aprendizado. É necessário oferecer o conhecimento a elas de modo convidativo - mediante jogos, por exemplo. E, embora ele desse primazia teórica às sensações, não via nelas uma função didática: educar com prêmios e punições (para provocar prazer e mal-estar) seria manter os pequenos no estágio mais primário da escala do entendimento humano. É necessário levá-los a pensar para que rompam a dependência em relação aos sentidos. Embora não descartasse a possibilidade de castigos, inclusive corporais, Locke afirmava que seu uso poderia fazer com que as crianças se tornassem adultos frágeis e medrosos.

História

O triunfo liberal sobre o poder absoluto



A volta de Locke à Inglaterra, em 1688, na comitiva do novo rei, Guilherme de Orange, teve um forte aspecto simbólico. Significou o triunfo das idéias liberais do filósofo a respeito da organização do Estado e a consolidação do poder político da burguesia. Guilherme de Orange desembarcou no país com o propósito de recorrer às armas contra o rei Jaime II, que acabou fugindo para a França.

O monarca, católico e impopular, havia atraído o descontentamento da cúpula da Igreja Anglicana, que articulou o retorno do futuro soberano.

O episódio, que passou para a história como Revolução Gloriosa, foi na verdade uma transição pacífica, mas significou uma mudança profunda no sistema político, antes baseado no poder absoluto do rei. Assim que assumiu, Guilherme de Orange convocou um Parlamento. A nova casa legislativa publicou uma declaração de direitos, inaugurando a monarquia constitucional, que, atualizada, vigora até hoje no país.

A deposição de um rei por descontentamento popular foi ao encontro das idéias que Locke expôs no Segundo Tratado sobre o Governo.

Na obra, o filósofo defende que a administração do Estado se sustenta num pacto social entre o rei e o povo, tendo em vista o bem-comum.

Se os interesses do povo são contrariados, justifica-se a deposição do monarca. Locke, para relativizar o poder do trono, argumentava que todos os cidadãos têm o direito natural à liberdade e à propriedade, ainda que, no último caso, excluísse, na prática, aqueles que vendiam sua força de trabalho aos donos de terras.


Locke na tv

Não é por acaso que um dos personagens do seriado Lost (exibido pelo AXN) se chama John Locke. No grupo de sobreviventes de um acidente aéreo numa ilha misteriosa, Locke é marcado pelo espírito investigativo e pela racionalidade.

O título do segundo episódio da primeira temporada é Tabula Rasa - como Locke definia a mente humana - e o nome do pai de Locke (o personagem) é Anthony Ashley-Cooper, o mesmo do lorde que protegeu Locke (o filósofo).

O sobrenome de Danielle, uma personagem que se encontra há 16 anos na ilha, é Rousseau, o mesmo do filósofo suíço Jean-Jacques, que em sua obra fez o elogio do "bom selvagem".

Pedagogia

Guia para a formação do cavalheiro



No livro Alguns Pensamentos Referentes à Educação, Locke afirma que "é possível levar, facilmente, a alma das crianças numa ou noutra direção, como a água". Formar um aluno, sob o aspecto intelectual ou moral, seria exclusivamente um resultado do trabalho das pessoas que os educam - pais e professores, a quem caberia sobretudo dar o exemplo de como pensar e se comportar, treinando a criança para agir adequadamente. O aprendizado deveria ser feito por meio de atividades. A idéia era que a criança, pelo hábito, acabaria por entender o que está fazendo. Para Locke, a educação ideal seria promovida em casa, por um preceptor, papel que ele próprio desempenhou para os filhos de alguns amigos. O filósofo tratava exclusivamente da formação do gentleman, o cavalheiro burguês em busca de sucesso no trato social. "Locke pensou somente nos homens burgueses, destinados a ser os novos governantes, pois acreditava que por intermédio do exemplo dado por eles seriam educados os demais", diz Clenio Lago. A conduta e a ética do gentleman, incluindo as boas maneiras, tinham prioridade sobre a instrução. A erudição característica dos princípios pedagógicos renascentistas dava lugar a um conhecimento voltado para a prática. "Era necessário fundar as bases morais da nova sociedade antes de ensinar qualquer conteúdo", afirma Lago. A saúde e o controle do corpo também ganharam destaque porque Locke preconizava um certo endurecimento físico para facilitar a autodisciplina e o domínio das paixões, com o objetivo final de alcançar a virtude sem se submeter a dogmas ou tradições.

Quer saber mais?
Bibliografia

História da Educação e da Pedagogia, Lorenzo Luzuriaga, 292 págs., Ed. Nacional, tel. (11) 6099-7799, 44,90 reais

John Locke, coleção Os Pensadores, 320 págs., Ed. Nova Cultural, tel. (11) 3039-0933, 19,90 reais

Locke e a Educação, Clenio Lago, 136 págs., Ed. Argos, tel. (49) 3321-8218, 20 reais

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